Escolhas Improváveis



I


— A senhora está presa. Tem o direito de permanecer em silêncio, tudo o que disser poderá ser utilizado em tribunal… — o agente da PSP algemou a acusada de furto, apanhada em flagrante delito e encaminhou-a para o carro patrulha, fechando a porta de seguida.

Atrás deles seguia apressado o seu colega, que tinha ficado para trás, a recolher o depoimento do dono da loja.

— Alves, tens a certeza disto? O dono continua a insistir.

- Não me venhas com isso! A velha ainda tinha o gorro enfiado e a arma na mão. O homem foi agredido com a coronha da pistola e apagou, sabe lá ele o que diz.

— É certo o que estás a dizer, mas achas que ela tinha força para lhe dar uma cacetada daquelas? Parece demasiado franzina para lhe causar tamanho estrago. — argumentou Ribeiro, que não estava nada convencido daquela detenção, apontando na direção da velha com um inclinar de cabeça.

— Honestamente não sei do que te queixas, nem tu nem o dono da loja. A mulher assumiu a culpa, o dinheiro está todo ali, espalhado pelo chão e pela bancada. Ela vai presa, ele não tem prejuízo nenhum e nós vamos de fim de semana. Além disso, se ele quiser, ainda pode pedir uma indemnização pelos danos físicos e psicológicos que este evento traumático lhe causou e blá, blá, blá… queres melhor?

Os dois agentes seguiram até à esquadra à qual pertenciam, com a dita ladra sentada no banco traseiro, demasiado reta e firme para quem ia algemado e em completo silêncio. A pouca conversa que houve entre os agentes focou-se nos planos que o Agente Alves já tinha para o fim de semana. Enquanto isso, Ribeiro parecia ouvir tudo o que o colega tinha para dizer, mas na verdade continuava a debater-se com a informação contraditória recebida naquele estranho serviço.

Já na esquadra, na sala de interrogatórios, a mulher repetia a mesma frase em resposta às várias perguntas feitas:

— Fui eu que assaltei aquela loja.

Toda a situação era inusitada, a assaltante era uma idosa, a arma era de brincar, apesar de muito semelhante a uma verdadeira e o lojista insistia que a velha não era a criminosa. Um dos polícias algemou a suposta culpada e o outro definhou na tentativa de encontrar uma opção compatível com as alegações da vítima.

Quando terminado o inquérito e com a falta de novas informações, o agente Ribeiro viu-se forçado a dar o braço a torcer e a oficializar a detenção. Pelo corredor que antevia o lugar onde iria passar a noite, Antonieta conseguiu prever que as celas teriam um cheiro ainda mais intenso a urina, sobreposto por amoniacal. Apesar de se sentir nauseada, naquele momento, não podia dar-se ao luxo de ser picuinhas. Iria passar a noite completamente sozinha e, com esse tempo, conseguiria ter um plano preparado na manhã seguinte.

 

Nada previa aquela mudança de rumo na vida de Antonieta Lopes, por falta de trabalho e excesso de idade, cada vez mais tinha uma vida vazia. Já não trabalhava e desconfiava que os clientes fugissem dela quando descobriam a idade de quem os iria representar. Talvez tivessem medo que falecesse a meio do processo, mas a bem da verdade, também se morre aos 39 ou aos 59 anos. Qual a diferença quando se tem 79? A vontade de trabalhar estava presente e, felizmente, a capacidade mental não a tinha abandonado. Talvez o corpo já não se apresentasse no seu melhor, mas ela resistia, mantinha-se firme e de cabeça erguida, fosse qual fosse a situação que enfrentasse.

Mas a vida não dava para aguentar muito mais tempo daquela maneira, e não havia uma forma de sair daquela situação cada vez mais deplorável.

Frustrante! A verdade é que envelhecer é uma merda.

A solidão nunca a afetara, era uma preferência sua, sozinha é que ela estava bem. No entanto, precisava do trabalho, tinha saudades de exercer a sua profissão que foi a única constante na sua vida. Além disso, também a qualidade de vida já não era a mesma, as despesas mantinham-se, sobrepunham-se ou até, substituíam-se, e vamos ser realistas, ninguém vive da reforma. Sobreviver talvez, mas para Antonieta, sobreviver não era opção.

Quando o pânico trespassou o olhar do jovem assaltante, Antonieta nem pestanejou. Lançou-se na sua direção e tomou o seu lugar. Exigiu-lhe os objetos que lhe conferiam uma imagem de fora da lei. Em resposta, ele não mexeu um único músculo, a gravidade do que provocara deixara-o bloqueado. A advogada tirou-lhe o gorro, deixando antever o rosto demasiado jovem, talvez não excedendo a maioridade, fê-lo descer sobre o seu próprio rosto e empurrou o miúdo na direção da porta.

— Quando chegares à rua corre. Corre e grita que estão a assaltar a loja. Não pares de correr até estares num lugar seguro.

A velha não planeara nada daquilo, nem tinha bem a certeza do que fazer dali em diante. Como advogada sabia que assumir a culpa por um crime, por norma, levava a um veredicto final de culpado e com uma pena para cumprir. Começava a acreditar que a sua fantasia teria ido longe demais e, se fosse esse o caso, a única coisa que a poderia ilibar era a alegação de insanidade temporária devido ao choque.

Guiado pela chinfrineira toda, causada pelos veículos de intervenção e de socorro, o lojista começou a dar sinais de consciência, mas antes que ele abrisse os olhos, Antonieta eliminou toda e qualquer aparência de cuidado e preocupação, voltando a desempenhar perfeitamente o papel de cabra insensível.

— Mexe-te só um milímetro e levas outra fruta igual. — rosnou-lhe ela, mostrando-lhe a coronha da pistola. Confuso, mas consciente da sua posição, o homem obedeceu, permanecendo quieto e de olhar fixo na assaltante.

Dois minutos depois, Antonieta deixava cair a arma seguindo as indicações do agente, que mais tarde se identificou como Agente Alves.

 

II

 

Pela enésima vez, voltava a assistir àquela merda e, apesar de não concordar, já não havia nada que pudesse fazer. Na última vez, fora agredido até perder os sentidos e acabara sozinho no hospital com um braço partido e uma dor profunda no peito, não da tareia, mas das palavras que ouviu a mãe proferir:

— É bem feito, para a próxima não te metas.

Desta vez, quando tudo escalou Tomás decidiu de outra forma: saiu daquela casa para nunca mais voltar. Pegou nos poucos pertences que tinha e em meia dúzia de coisas que conseguisse vender e foi-se embora, não havia ali mais nada para ele além de sofrimento.

Tudo o que veio posteriormente a essa decisão foi difícil, mas tudo piorou quando deixou de ter o que vender para comer. Passou a ter de roubar, mas tentava sempre que isso acontecesse de maneira discreta. Roubava para comer, mas o tempo continuava a passar e ele não conseguia arranjar emprego, o aspeto que tinha estava cada vez pior, não tinha onde tratar da sua higiene, continuava a dormir ao relento e não havia ninguém a quem pedir ajuda.

Os ditos amigos da escola não se interessavam mais por ele, afinal de contas, já não precisavam de copiar nos testes. Todos eles, ou na sua maioria, tinham seguido com a sua vida académica, deixando Tomás completamente isolado.

Apesar de tudo, nunca quis voltar para trás e agarrou-se à ideia de que iria conseguir, aquele caminho não era o seu, era uma questão de aguentar até encontrar o seu rumo.

Depois de mais uma distribuição de currículos, impressos com o dinheiro de esmolas, conseguiu uma entrevista de emprego. No entanto, não podia apresentar-se naquelas condições, precisava de uma noite num motel barato para tomar banho e arranjar-se, o seu futuro dependia disso. Infelizmente, para que isso acontecesse, teria de fazer algo que nunca tinha feito: roubar por dinheiro.

Percebeu que aquela loja de conveniência era o sítio mais indicado para o assunto: tinha pouco movimento pela hora de almoço, o dono já era idoso, por isso não seria grande ameaça, provavelmente até lhe daria tudo de boa vontade de forma a evitar um confronto.

Durante a manhã, ocupou-se encontrando a pistola de brincar mais semelhante a uma verdadeira e roubou-a sem ninguém se aperceber. De volta ao esconderijo, nas traseiras da loja de conveniência, esburacou o único gorro que tinha, para fazer as vezes dos olhos. O resultado final não era de todo profissional, mas era o mais parecido que poderia ficar com um verdadeiro assaltante e, se tudo corresse como o previsto, seriam de utilização única. Não tencionava voltar a roubar.

O que Tomás não contava foi com o que aconteceu no momento do assalto.

Não contava com a resistência do velho.

Não contava em agredi-lo com a pistola.

Não contava com nada daquilo e simplesmente entrou em pânico. E se ele pensava que tudo estava fora do seu controlo, quando ouviu outra pessoa a exigir-lhe que fugisse e a deixasse ali sozinha, percebeu que a bizarria ainda estava longe de chegar ao fim.

Ela tirou-lhe o passa-montanhas improvisado e a arma e, se percebeu que era uma réplica inofensiva, não lho disse. Mandou-o apenas embora e que entoasse pelo caminho que havia ali um assalto. E ele correu, correu sem rumo, pois não havia nenhum lugar onde se sentisse seguro.

Perdera a oportunidade de conseguir aquele emprego.

Perdera a sua dignidade, porque agredira um idoso sem que o mesmo lhe tivesse feito algo de mal. Não sabia se ele estava sequer vivo, porque ele caíra no chão inanimado com a brutalidade do seu ataque.

Mais tarde, decidiu regressar ao local e graças ao descuido dos agentes, conseguiu entrar pela janela do escritório da loja e levar consigo o que tinha ido buscar naquela tarde. Trouxe consigo o dinheiro que fora largado dentro da gaveta da caixa registadora ainda aberta e uma provisão de alimentos que lhe garantisse comida para os próximos dias.

O seu plano estava de novo em execução, seguia-se um banho bem quente e uma noite tranquila no motel. Ainda assim, a preocupação com o velho não o abandonava e o que conseguiu dormir foi de exaustão. No dia seguinte, saiu do motel decidido a conseguir aquele emprego, todo o seu futuro dependia disso.

Passadas 24 horas ele tinha o emprego e descobriu, enquanto vigiava a loja, que o proprietário estava vivo, tinha uma ligadura à volta do crânio, a cara inchada e negra, mas parecia que iria ficar bem. Tomás ficou, senão feliz, pelo menos aliviado. Mas ainda faltava uma peça do puzzle, o que teria acontecido à velha?

Daí em diante dedicou-se a três coisas: sobreviver, trabalhar e procurar pela mulher que o tinha livrado de um futuro ainda pior do que o que já tinha.

 

III

 

A condenação levou a uma estadia na prisão e, para que isso acontecesse, Antonieta teve que se recusar a pagar para usufruir da pena suspensa. Ainda assim, tinha de trabalhar diariamente para garantir que não saía mais cedo por bom comportamento, tinha de criar conflitos: uns bate-boca para entreter, umas chapadas aqui, uns puxões acolá. Enfim, quem diria que seria tão difícil ir dentro, pensou ela.

O tempo foi passando e finalmente conseguira o que tanto queria: adquirira novos “clientes”, alguns com situações bem complexas e estava novamente em ação. Desconfiava que só queriam a sua ajuda porque não tinham mais ninguém a quem recorrer e também porque o que ela cobrava era tão pouco que estava à disposição de qualquer um.

Antonieta nunca pensara que a sua fantasia se tornasse realidade. Idealizar a reforma num estabelecimento prisional é algo que nunca passaria pela cabeça de um comum mortal, mas para ela só havia uma coisa que lhe invalidava este plano: tinha de cometer um crime. Em primeiro lugar, porque ela não era uma criminosa, em segundo, porque ela sentia ser incapaz de agredir alguém (apesar de acreditar que todos somos capazes de atos violentos, apenas temos pontos de rutura distintos) e, por último, como iria conseguir fazer isto tudo e ainda garantir que era apanhada? Só assim o plano estaria completo.

Basicamente a sua fantasia tornara-se realidade: comia, dormia e realizava diversas atividades sem pagar um cêntimo e, além disso, recebia um valor diário para a sua futura reinserção na sociedade e outro pelos serviços prestados aos presidiários que a procuravam.

 

Já lá estava há algum tempo quando recebeu a primeira visita.

Quem seria? Família não era com certeza.

Mas a adivinhação não iria demorar muito tempo, quando algo deste género acontece numa prisão os guardas simplesmente anunciam e levam-nos até à sala de visitas.

Quando ela o viu, estacou. Reconheceu-o de imediato. O mesmo olhar, cabelo castanho claro e revolto, estava limpo e aparentava um maior domínio sobre si, mas, dadas as circunstâncias anteriores, não era difícil de se apresentar pior do que naquele dia.

Sentou-se à sua frente e perguntou-lhe:

— Que estás tu aqui a fazer?

— Quero saber o porquê?

— Lamento, rapaz, mas não te vou responder a isso. Agora desampara-me a vista e volta para onde vieste. — Tomás pensara muito se deveria ir, não sabia o que iria encontrar, mas não conseguia estar bem com ele próprio sem saber e agora ela mandava-o embora? Isso não ia acontecer. Ele denotou então que a velha tinha um ar vivaço e aprumado. Era notório que estava bem e, quem sabe, feliz ali. Antonieta preparava-se para se ausentar da mesa quando o ouviu rosnar:

— Não! — disse-lhe ele, levantando a voz para provocar uma reação dos guardas prisionais e, depois voltando ao tom normal, continuou — Eu quero saber. E se não me contar eu desmascaro-a, assumindo aqui mesmo a culpa pelo que eu fiz.

— E porque achas que essa chantagem irá funcionar?

— Porque agora consigo ver que este era o resultado que procurava. Com certeza que não o quer perder.

Antonieta bufou até deixar de ter ar nos pulmões. Baixou a face e fechou os olhos, ficando nesta posição durante uns meros segundos e quando voltou a inspirar, ergueu a cabeça, abriu os olhos e encarou o jovem à sua frente. Tinha um ar abatido, mas decidido e ainda apresentava a mesma inocência no olhar e isso, de alguma forma, tranquilizou-a.

— Como te chamas? — perguntou-lhe.

— Tomás.

— Tomás… — repetiu ela pensativa, fazendo prolongar o nome na fala. — Naquele dia não eras o único desesperado dentro da loja. A diferença entre nós é que eu não sabia o que fazer para mudar a minha situação e tu, sem saberes, acabaste por me ajudar porque não conseguiste lidar com a “consequência” dos teus atos.

— A senhora está presa, como é que isso foi uma ajuda?

— Experimenta ter a minha idade, não teres família, estares habituado a receber muito bem como advogado e, quando chegares à reforma, perceberes que o dinheiro mal chega para pagar as despesas básicas de uma velha acabada e com vários problemas de saúde.

Tomás ficou surpreso com a veracidade daquelas duras e cruas palavras. Quando decidiu ir visitá-la não sabia ao que ia, não sabia o que esperar ou quais seriam as suas palavras, mas não tinha equacionado aquela opção. Antonieta apercebeu-se do seu pasmo, mas apenas continuou o seu relato:

— Não querias saber o porquê? Desculpa lá se esperavas um motivo mais humano e empático, mas esta é a verdade. Eu sou uma velha egoísta que precisava urgentemente de estar acompanhada e de ter algumas regalias e cuidados sem gastar um tostão. Voltei a trabalhar e estou muito bem com tudo isto. — Antonieta falava com orgulho no seu feito, mas enquanto expelia os seus argumentos apercebeu-se de que metade estava incompleto e a outra metade era mentira porque se tivesse feito tudo por egoísmo, a inocência do rapaz não lhe seria relevante. Antonieta acabou por acrescentar um desabafo. — Eu não estou pronta para assumir a velhice. Dói ser encostada a um canto e deixar de ter um propósito.

— Porquê eu?

— Naquele dia eu vi o pânico no teu olhar e percebi que aquele rapaz estava disfarçado de assaltante e que não tinha noção do que estava a fazer. Que tinha tomado uma decisão desesperada e não sabia como as coisas poderiam correr mal e tão depressa. Hoje olho para ti e vejo que tinha razão, tu não és um criminoso. Algo te fez pensar que era a única solução que tinhas. Além disso, eu não tenho por hábito estar no meio de atividades criminosas com a frequência necessária para escolher o que me dava mais jeito. Agora conta-me: o que te levou àquela decisão, no mínimo, estúpida?

— É uma história longa…

— Temos tempo e, se não contares hoje, podes sempre voltar. Sabes onde me encontrar. — relembrou Antonieta com um pequeno e torto sorriso.

 

IV

 

Quando a encontrou, descobriu que estava a cumprir a pena que deveria ser dele. Apesar de estranhar a vontade dela, descobriu que ela estava bem e invulgarmente feliz. Era bom falar com ela, Antonieta ouvia-o, depois retribuía com inúmeras histórias, na sua maioria caricatas, relacionadas com as suas vivências e com as dos seus antigos clientes. Sendo ela uma advogada de defesa, não havia muita gente a gostar dela que não fosse, no mínimo, acusado de um crime. Além das histórias, Antonieta contou-lhe o motivo pelo qual adorava a sua profissão: era conseguir provar que alguns acusados eram realmente inocentes.

As visitas de Tomás aumentaram, passando a semanais depois de se inscrever na Faculdade de Advocacia. Apesar do trabalho e os estudos, ele guardava sempre tempo para dedicar a Antonieta, o convívio entre eles tornou-se imprescindível. O cuidado passou a ser mútuo e criaram uma amizade improvável. Antonieta ajudou-o como pôde e convidou-o a viver em sua casa, agora vazia, e a ficar pelo tempo que quisesse, uma vez que tinha o quarto de hóspedes e uma biblioteca inteira relacionada com advocacia à sua disposição.

 

Quanto ao velho… continuou a fazer o seu dia a dia, apesar de saber que o verdadeiro assaltante estava em liberdade. Nunca mais o tinha visto, até ao dia em que o rapaz entrou pela loja, dirigiu-se a ele e, deixando um envelope em cima do balcão, lhe pediu desculpa e voltou a sair. Lá dentro, o rapaz tinha-lhe deixado uma quantia bem superior à que lhe tinha roubado naquela noite e uma carta que continha toda esta história.

 

 

FIM


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