I
Numa noite fria e mal iluminada, percorro um caminho denso entre árvores e vegetações altas, na esperança de encontrar o lugar que me é destinado. Não me lembro há quanto tempo caminho, mas acabo por chegar à clareira. Agora consigo ver aquele que deve ser o acesso principal à propriedade.
É uma casa grande e disforme, com dois pisos e um alpendre em redor. Parece abandonada, pelo tempo e pelas pessoas que, em tempos, lá viveram. Não posso considerá-la vulgar, há algo nela que me elucida para a sua diferença.
Talvez sejam aquelas janelas desproporcionais, com o formato de olhos chorosos. Há demasiada humidade no ar, e muita já se entranhou nas fachadas desta tenebrosa mansão. O musgo, agarrado aos contornos de pedra das duas janelas, corrobora a ilusão do choro.
Sinto um calafrio, não quero acreditar que este seja o meu destino, mas eu sei que estou no sítio certo. Onde devia estar desde o início.
Não consigo explicar estas sensações e certezas, mas sei que alguém me observa desde que pisei a clareira e que anseia pelo meu escrutínio. Olho melhor, com mais atenção e consigo vê-la.
É terrivelmente magra, pálida e um tanto sombria.
Mas que raio!
Estou na minha cama, a suar, acordei atormentado com este sonho.
Melhor dizendo: com este pesadelo.
Nunca tinha sonhado com aquela casa, pelo menos que me lembre, e acontece o mesmo com aquela mulher…, no entanto, parecem-me familiares.
A sede leva a melhor e levanto-me para ir à cozinha. Assim que saio da cama arrependo-me, está demasiado frio e a cozinha é consideravelmente longe. Desço os degraus, são dezassete, mas apenas um não range sob o peso do meu corpo. Desvantagens de escadas de madeira antiquíssimas. Por onde passo, acendo a luz correspondente e deixo-a acesa para que ilumine o meu regresso. Quando chego à cozinha dou logo de caras com o copo pousado ao lado do lava-loiças, meio cheio de água, como é habitual. Estou prestes a saciar a sede quando ouço um ranger vindo do meu quarto, no andar de cima.
Ainda devo estar a sonhar, penso. Pouso o copo vazio e dirijo-me para o quarto.
Estranho! Ia jurar que tinha deixado as luzes todas acesas.
Estremunhado pelo sono que não dormi, subo as escadas, de volta ao quarto sem dar importância à escuridão que me rodeia.
II
Quando o despertador dá início à cantilena de bips repetitivos e irritantes, nem quero acreditar que a noite terminou. Para minha infelicidade é dia de trabalho, por isso não posso simplesmente desligá-lo e virar-me para o outro lado.
O dia correu demasiado lento e o esforço para o acompanhar levou a pouca energia que tinha. No trabalho, a minha produtividade foi nula, para não dizer negativa. A sesta que me espera antes da hora de jantar torna-se obrigatória.
Algo cai, parte-se.
Acordo em sobressalto.
Ouço vozes.
Adormeci no sofá.
Levanto-me de rompante, dou de caras com a televisão acesa, é de lá que vêm as vozes, mas isso não justifica a aragem e o frio.
Que horas são?
Quando desbloqueio o smartphone vejo que são 2h30 da madrugada e que tenho um novo pedido de amizade no facebook. Esfrego a palma da mão pela cara e pelo cabelo, na tentativa de despertar o meu raciocínio. Removo a notificação sem ver de quem se trata – tenho tempo pela manhã – e sigo em direção à corrente de ar.
— Ai, Merda! — Pisei alguma coisa. Tento fugir, sair de cima dela, mas não consigo, tenho algo agarrado aos pés! Lembro-me novamente do que me despertou. Partiu-se… o quê?
Apesar do sofrimento, corro em direção ao interruptor e acendo a luz. O chão, junto ao lava-loiças, está repleto de minúsculos pedaços de vidro e linhas esborratadas escarlates, com o formato dos meus pés. Por momentos, permaneço encadeado pelas luzes brancas que descem do teto, mas quando a visão se adapta à mudança percebo logo o que tenho cravado nos pés: o copo que habitualmente está pousado junto ao lava-loiças. A corrente de ar deve tê-lo feito cair, no entanto, a janela está fechada.
Como é que é possível?
Enquanto tiro os pedaços de vidro, um por um, perco-me em explicações para o que acabou de acontecer.
Só posso estar doido.
Aqui estou eu, novamente, frente a frente com a casa, a mesma casa. Com o mesmo olhar miserável. Tudo nela me recorda uma imploração e a porta escancarada faz ecoar a súplica contida. Não há ninguém na rua, já era de esperar, é de noite e ainda não vi ali ninguém exceto aquela mulher.
Dou um passo em frente, quase decidido a entrar, apenas faltam uns escassos metros para alcançar a porta, mas algo me faz olhar na direção das janelas. Lá está ela, com um vestido esfarrapado branco. A cara dela parece um borrão e, no entanto, a semelhança com a fachada da casa é gritante.
Volto a encarar a porta, já não sei se quero entrar. Não sei o que esperar ou o que vou encontrar.
— Vem até mim. — Ouço com distinção. Será ela quem me chama?
As luzes da rua, outrora ténues, ganham intensidade e encadeiam-me.
Não vejo nada. Estou apavorado e tento fugir, mas não consigo. Estou petrificado.
Grito infinitamente, na esperança de que alguém me ouça.
Acordo com o meu impacto no chão, assustado e confuso, com o coração a bater descompassado. Sinto-me gelado e a tremer, completamente desorientado.
Inspira, expira, inspira…
Um flash de memória atinge-me pela primeira vez e percebo que algo mudou, o meu coração ganha velocidade e a respiração começa um novo ritmo descompassado.
Como raio vim eu parar à cama?
Pondero se não terei sonhado com tudo aquilo, que não acordei na sala, mas a dor aguda que me atinge quando assento os pés no chão garante-me que não. Os golpes ensanguentados continuam lá, vermelhos e inflamados.
Não há explicação possível para o sucedido. E o pior é que não consigo voltar a dormir, mal fecho os olhos sou assombrado pela luz incandescente e ouço novamente aquela voz.
Os dias tornam-se semanas e o meu humor está cada vez mais debilitado. Há três semanas que não tenho descanso, os pesadelos são cada vez mais intensos e verossímeis, quase não consigo distinguir a realidade do pesadelo. O raciocínio torna-se lento e doloroso, proveniente do cansaço extremo.
Tenho de fazer alguma coisa para acabar com isto, mas o quê?
Ontem, a meio da noite, depois de mais um sobressalto, acordei com um bloco de notas na mão, um bloco que devia estar no escritório, junto a todo o material deste género, mas que, em vez disso, está cerrado entre os meus dedos.
Lentamente, abro a mão dorida e vejo que está aberto numa página escrita.
Visito-te todas as noites, procuro avisar-te: o monstro já não te pode fazer mal.
Lembra a tua verdade.
Aquela letra não é minha, nem mesmo semelhante, esta é bonita e cuidada e faz-me mergulhar em memórias que eu nem sabia que tinha. Acredito que sejam minhas, não aguento se não forem. Não depois de tudo o que tenho passado.
Pergunto-me o significado destas aparições, se me é permitido chamar-lhes assim, e também porquê agora. A única forma de saber a verdade é abrir o envelope que os meus pais adotivos me deixaram, quando morreram, com toda a informação da qual nunca quis saber.
Com a apreensão de quem receia e sofre, abro o envelope e, com ele, a porta para o passado que já esqueci. Inicio uma viagem sem sair do cadeirão.
Fui adotado aos cinco anos e percebo agora que a minha vida antes disso foi puro terror, foram tantas as agressões que o meu cérebro decidiu, e bem, fechar tudo num local inacessível e eu pude ser uma criança tão normal quanto possível. Lembro-me que fui eu quem fugiu daquela vida e o denunciou, mesmo no dia da morte dela, da mulher que me visita enquanto durmo, da minha mãe. Ele matou-a e eu seria o próximo.
Graças às fotografias que encontrei, deixadas à minha família adotiva, consegui finalmente ver o que estava atrás da cortina, incluindo ele, o meu pai.
Como se de uma transição se passasse, agora estou num novo cenário, entro em casa e a sensação de familiaridade atinge-me. Sinto uma inquietação enorme quando me deparo com o espelho antigo e manchado à minha frente.
Quem me devolve o olhar é uma criança, não deve ter mais de três ou quatro anos. Tem um olhar perdido e suplicante, as roupas sujas e rotas e a cara molhada, de lágrimas e ranho. Estendo a mão na sua direção e vejo que ele levanta a sua de encontro à minha. Estão tão próximas, quase se tocam. Dou um passo em frente para acabar com a distância e o embate contra aquela superfície dura e fria completa a conexão entre nós.
— Anda Ernesto, está na hora da caminha, qual é a história de hoje? — pergunta uma voz suave feminina.
O Ernesto de quatro anos desvia o olhar e concentra-o no cimo das escadas, subindo-as de seguida. Eu olho também, a nossa conexão ainda existe, mas num lugar mais profundo da minha mente.
Subo as escadas, estas são de pedra e não emitem qualquer som à minha passagem, e estaco à entrada da única porta aberta. Vejo a mesma mulher, com o mesmo vestido de dormir branco e maltratado, sentada na beira da minha antiga cama a contar-me uma história.
— Mas mamã, o monstro não vai voltar, pois não?
— Não meu querido, hoje o monstro não vai voltar.
Num filme projetado, são-me apresentadas inúmeras imagens, que exibem o meu passado em revista. Há muita coisa que ainda não faz sentido, mas uma coisa é certa: tal como sei que aquela mulher é a minha mãe, aquele é o monstro da minha história, do meu passado, ele é o meu pai.
IV
Agora que percebi com quem sonho já não tenho medo de adormecer. Também já não preciso de estar a dormir para me encontrar com o meu passado e com tudo o que lhe diz respeito.
Por cada passo que dou, por cada divisão que visito, novas memórias se desvendam e cada vez são mais vividas, mais carregadas.
Agora relembro os meus pais biológicos e as suas discussões constantes, lembrei-me de quando corria escada acima para me refugiar no meu quarto enquanto a tempestade de insultos e violência não terminava.
Até ao dia de hoje, nada mais soube sobre o meu pai biológico. Com a ajuda da documentação que me foi deixada e com o recurso aos serviços disponíveis, descobri que a casa é minha por herança.
O dia em que o meu pai morreu, foi o dia em que sonhei pela primeira vez com aquela casa.
Não deixo de pensar que a minha mãe precisava de se despedir de mim. E, quem sabe, eu também precisava de me despedir dela.
Esta é a minha verdade, concluo.
FIM
Gostei. Continua neste teu caminho e acredita no teu sucesso.
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